Capítulo XIV - Até nós voltamos dos mortos

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De início não conseguia ligar o fato às imagens... Fui recepcionada pela minha mãe e por uma amiga-irmã: Gleice. Me receberam de braços abertos, naquele amplexo que nos enche de ânimo e prazer, sem que tenha hora para terminar. Não queria mais sair daquele êxtase e foi com muita força mental que me "toquei": elas já tinham desencarnado há algum tempo! Eu morri! Tinha deixado de existir no plano material que conhecíamos e passado a outro, invisível para a maioria, mas levemente compreendido por alguns. Chamem como quiserem, mas eu simplesmente nomearei de "Céu", já que nele tinha acabado de encontrar duas joias queridas!

"Seja bem-vinda, filha! Eu esperava que demorasse mais, mas nem sempre as coisas saem como pensamos, não é? Que baita aventura você se meteu!" - aquele sorriso morno me preenchia a alma de uma forma indescritível! Eu nem conseguia articular palavra, apenas me sentia plena, com total consciência e feliz.

Olhei para a Gleice e ela também sorria: "Oi, sua feldelina! Demorou pra aparecer por aqui.", sempre tirando um sarro de mim, eu a abracei efusivamente! Como era bom!

"Meus amores! Como é boa essa recepção! Eu nem sei se mereço!... Então é assim que tudo começa por aqui. Me sinto um pouco estranha, zonza... Ao mesmo tempo que pareço plena como nunca estive! É incrível ter mais conhecimento do que se tinha quando encarnado... Mãezinha! Gleice! Como é ótimo vê-las bem!" - e eu sorria bobamente...

Elas vieram conversar sobre a loucura que havia feito, aceitado ajudar assim pessoas estranhas e, ao mesmo tempo, conhecidas de anos (somente pelas HQs); falaram que o desligamento foi tão rápido pois um dos meus pensamentos constantes era ajudar para que outros não passassem por esse sofrimento. Eu, praticamente, tinha me sacrificado pelo próximo e isso ajudava muito nesse desenlace.

"Falo por experiência própria, Li..." - relatou minha amiga, que também havia partido de modo trágico. Como eu tinha saudades dela! "Mas nada de tristeza! Vamos caminhando pois temos muito que mostrar, né dona Isabel?!" - e soltou aquele risinho que só ela sabia dar.

Eu ia começar a segui-las, quando minha mãe material estacou: "Hum... Acho que não vai ser desta vez, filha..." - e esticou as mãos para me dar outro abraço.

"Como assim, eu vou precisar ir pra outro lugar? Tudo bem... Eu faço o que for preciso pra ficar com vocês, agora ou depois! Sei que temos "só" a eternidade, então dá tempo" - e dei uma piscadela para as duas, indo abraçar singelamente minha mãe.

"Puxa, que curioso, Liu... A gente achou que era sua hora e por isso fez essa pequena comitiva, mas estão avisando aqui que você volta pra Terra por mais algum tempo. Não é bom demais?!" - a Gle completou, fazendo uma carinha de "que pena" mesclada com um sorriso.

"Não! Eu não quero voltar!... Imagina, depois da "sova" que eu levei não vou ter mais corpo pra retornar, só um "saco de carne", com muita dor, aqui 'tá bom demais pra mim, não, não..." - mas conforme ia falando isso para elas começava a ver duas realidades: uma onde abria lentamente os olhos e via James e outra quando fechava os olhos e as via. Elas me abraçaram, beijaram e desejaram bom retorno, falando que estariam lá quando eu realmente fizesse a passagem.

"E que seja só depois de uns 50 anos, filha! Você tem muito que viver ainda! Te amamos!" - foi o última que ouvi... Agora, quando eu fechava os olhos somente via o que todo mundo vê ao fazer isso: escuridão... E ao abrir, percebia James sentado num sofá ao lado da maca onde eu estava, algumas vezes ele segurava minha mão, outras tentava descansar. Mas acho que mesmo quando eu pensava abrir os olhos, eu não os abria realmente na matéria, pois os médicos, enfermeiras e fisioterapeutas nunca conversavam comigo, mesmo quando eu os via. Eles sempre falavam com James e eu, algumas vezes, percebi movimentos negativos da cabeça dele, ao perguntarem se eu havia dado algum sinal...

"Depende dela agora, sr. James... Todos os sinais vitais estão corretos, as respostas táteis estão certas. O senhor pode ver que a cicatrização está ocorrendo, de modo favorável... Aliás, muito providencial o senhor ser tipo A positivo também. Creio que foi a diferença entre a vida e a morte, senhor..."

Ele não demonstrava nada no olhar ou na voz. Já devia ter ouvido aquilo tantas vezes... Há quanto tempo eu estava lá?! Quando eu ia conseguir quebrar aquele ciclo e me mover? Então eu só tinha conseguido voltar pelo imponderável ato de doação de sangue especial de James? Essa era a quarta vez que ele me salvava... Só que dessa eu poderia não ter sido salva...

Comecei a focar na minha mão esquerda, aproveitando que ele havia, novamente, encostado nela e fiz uma força hercúlea! Consegui! Chamei sua atenção! Agora, vai, corpinho! Abra os olhos! Pronto! Abri!

James pareceu não acreditar que minha mão havia se mexido quase imperceptivelmente, ele voltou seu rosto para o meu e quando consegui abrir os olhos um enorme sorriso apareceu em seu rosto:

"'cê voltou, gata! 'cê tá viva!" - e suas mãos apertaram mais a minha, dando alguns beijos nela.

Vamos tentar falar, né? Acho que eu preciso dizer, antes que esqueça, onde eu estava...

"Eu.. 'tava... no... Céu!..." - falei quase que num sopro, mas foi o suficiente pra ele escutar e arregalar os olhos.

"Xiii... Não precisa tentar falar, 'cê vai ter muito tempo pra isso depois, falou? Relaxa, trata de descansar e pensar que, mesmo não sendo o Céu, a gente precisa de você aqui, por favor..." - e aproximou-se mais do meu rosto, dando um beijo na testa.

Provavelmente, os analgésicos deviam ser tão poderosos que eu não conseguia me manter desperta por muito tempo... Ficava alternando entre escuridão, onde meus sentidos ainda captavam o que todos falavam e luz, quando conseguia abrir os olhos. Não faço ideia de quanto tempo se passou assim... Mas sempre que abria os olhos ele estava lá, de prontidão. Algumas vezes, focado em mim, outras descansando e, raramente, bebendo um café.

Em algum momento, consegui vocalizar: "Á...gua..." - James se levantou correndo e veio do lado da maca pegar um copo com água e uma espécie de esponja.

"Isso é bom sinal! Eles disseram que quando pedisse água era pra eu colocar essa esponja na tua boca e derramar umas gotas nela. Deixa escorrer, senão tu pode se engasgar, falou?" - eu acenei com a cabeça, sentindo a mão dele acariciar alguma coisa no meu ombro e a água descendo como uma benção. Ela descia pela minha garganta e lágrimas rolavam pelos meus olhos! Isso era um bom sinal! Iupi!

"Isso aí, guria, força que tudo vai dar certo" - ele cochichou na minha orelha, fazendo outro carinho nas têmporas. Apaguei de novo.

Em outros momentos, conseguia vocalizar mais algumas coisas, pra tentar saber sobre minha família, sobre quanto tempo tinha passado, sobre onde eu estava, sobre se a criatura tinha sido presa, sobre se ele estava bem.

Meu irmão foi avisado por ele, que se apresentou como guia, sobre o ataque do animal selvagem e, ao ser informado que eu estava em tratamento e que James seria o responsável pleno por mim, resolveu não ir até aquele fim de mundo, aparentemente eu havia sido transferida pro Yukon, nalgum lugar entre o Parque Nacional Nahanni e o Rio Ross... Ele disse que explicou da minha gravidade e que somente naquele local eu teria o atendimento possível para tentar salvar minha vida. "Todo dia ele me liga, liga no teu celular e pede pra eu mostrar como tu 'tá; é um cara legal." Sim, todos os meus irmãos são. Sou abençoada nesse quesito!

Fazia duas semanas e meia que eu tinha chegado lá, demorei tudo isso naquele "lapso" que passei entre minha mãe e minha amiga... Que coisa mais incrível é o tempo humano perto da eternidade... UAU!

Quando finalmente estava me sentando para me alimentar de líquidos ele resolveu contar o que aconteceu depois de ter mandado a Rosie me "apagar".

"Lembra que 'cê conseguia me acalmar, né? Claro... Pelo menos com amnésia tu não ficou. Então, pedi pra Rosie te apagar porque não podia pegar leve naquela hora e sua presença não ia me deixar liberar meu instinto. Se eu não apostasse tudo naquele momento, ela ia fugir, porque eu 'tava bem grogue ainda pelo golpe, com meu fator de cura tentando dar conta dos últimos detalhes e não podia correr o risco de falhar. Como eu tinha subestimado a criatura antes e acho que ela também tinha um fator de cura, foi te apagar e eu cravei minhas garras direto no abdômen dela também, uma pra que demorasse mais pra ela voltar, outra pra devolver o favor que ela tinha feito em mim - seus olhos chispavam de prazer - e aí ela caiu se contorcendo e resolveu deixar a pior parte pra guria, perdendo aquela forma e voltando a ser a menina que te abordou no bar. Filha da put@... Pensei que tinha perdido você e ela, mas percebi que mesmo a menina mantinha o fator de cura funcionante. Amarrei as mãos e pés, como se fosse um pacote, com uma corda especial que a sessão tem e, finalmente, pude voltar e pensar em você, já que não corria mais nenhum perigo. Pedi pra Rosie te trazer de volta, mas ela ficou muda..."

Nesse momento a voz de Rosie aparece na minha mente "Eu não queria dar a notícia à ele... Não sabia como dizer isso... Mas depois de alguns segundos, resolvi falar: Ela não resistiu, James... Sinto muito"

"Imagina se eu aceitei esse sentimento?! Qualé! Tu 'tava me devendo uma dança!"

Fui tentar rir, mas aí senti uma dor incrível nas costelas! Acho que consegui quebrar todas! Apoiei as mãos nelas e só sorri, tentando não demonstrar o quanto doía. Mas meus gemidos foram suficientes para que ele apertasse uma campainha que estava no quarto e chamasse a enfermeira falando: "Vê o que tu pode fazer, ela tá com dor..."

Apaguei de novo, que droga! Não aguentava mais ficar ali naquele quarto, queria sair! Mas, realmente, não tinha condição alguma...

Mesmo apagada, a voz dele apareceu na minha mente: "Consegue me ouvir?", respondi positivamente e ele continuou: "Foi aí que eu liguei pra uma agência secreta do Governo Canadense e cobrei uns favores. Eles te trouxeram pra cá e o resto da história tu já conhece... Peço desculpas se te trouxemos de volta do Céu... Mas não era tua hora, né?"

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