Kabukichō Blues

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Era noite de chuva no Distrito Autônomo de Kabukichō, o único lugar do Japão que ainda era controlado pela Yakusa, e não por grandes corporações. O reflexo dos letreiros de LED no asfalto molhado lembrava uma grande aquarela.

Enquanto um mar de guarda-chuvas passava pelas ruas, uma mulher japonesa abrigada da chuva forte esperava debaixo de um toldo. Ela parecia desconfortável, e estava fazendo o que pessoas desconfortáveis faziam; mexia no celular sem motivo.

Por algum motivo passou por todos os seus contatos; Abigail, Chizuru Kido, Ed Gabriella, Keiko, Ned Dillinger, Nyvi, Tom Kelly... a lista era grande.

Ela não sabia o que incomodava mais, o vento frio ou a espera. Ela estava aguardando um homem. Ia para um encontro. Estava bem vestida, mas nada de super produção. Apenas calça jeans, botas de couro e uma camiseta preta por baixo de um casaco também de couro que escondia seu corpo. Mesmo sendo japonesa, ela era uma mulher com curvas. Algo raro de acontecer por lá de forma natural.

Ela não só estava cada vez mais entediada. Estava começando a achar que ele talvez não viesse. Dessa vez, segurou a vontade de olhar no celular para ver as horas ou checar as mensagens.

– Atsuko!!! – Ela ouviu uma voz lhe chamando. Ela ficou aliviada. Seu par havia chegado. – Desculpe o atraso. Tive um pouco de problemas para entrar aqui.

Atsuko sorri sem jeito. – Me desculpe, Susumu. Se eu soubesse, teria marcado em algum lugar onde o trânsito é mais fácil.

Seu par, Susumu sorri de forma confiante. – Não há problema. Até porquê, aqui é perfeito. Então, onde gostaria de ir?

Atsuko, parecendo mais confortada, responde. – Que tal o Tokyu Milano primeiro? Tem um filme que eu estou querendo ver já tem um tempo, e acho que ainda está em cartaz.

– Com certeza! Susumu parecia animado com a sugestão. – Vamos?

Os dois saíram pela rua. A chuva havia parado, mas os reflexo no asfalto continuava.

Atsuko e Susumu trabalham em uma mega companhia de produção de androides, a Seitei. Ele no desenvolvimento, ela uma secretária novata que entrou recentemente. Os dois se conheceram um dia e viraram amigos. A ideia de sair juntos veio dele, com uma boa dose de coragem.

Os dois foram caminhando até o cinema, conversando animadamente sobre amenidades; gostos, preferencias, um sobre o outro. Não sentiram o tempo passar quando chegaram ao complexo.

- Bom, chegamos! Susumu respondeu animado. Qual filme você quer ver?

Atsuko se aproximou, procurando o filme. Ela estava com sorte! O filme ainda estava em cartaz.

- Esse aqui. Like a Dragon! – Ela respondeu animada.

Susumu achou graça. – Não achei que você fosse do tipo que gostava de filmes assim.

Atsuko lançou um olhar atrevido e respondeu. – Com sorte, você pode conhecer mais.

O filme não era nenhuma obra prima, mas era um bom divertimento, um homem membro da Máfia Japonesa que ganha uma segunda chance de ter uma nova vida. Um filme divertido, que os dois gostaram.

Ao fim do filme, os dois saíram do cinema. A chuva havia parado, mas as ruas continuavam cheias de gente saindo e entrando de bares, restaurantes e clubes de hostess. Eles com certeza teriam muitas opções para se entreter.

Resolveram esticar a noite em um restaurante de Yakiniku. Atsuko disse que estava com vontade e não gostaria de ir ao pub inglês, pois ela gostaria de uma coisa um pouco melhor do que "Peixe duplamente cozido" ou "uma torta horrorosa".

No caminho, foram discutindo sobre o filme, lembrando das partes e dos diálogos que mais gostaram. As ruas continuavam com uma quantidade considerável de pessoas, assim como alguns Yakusa. Alguns deles portavam algum tipo de arma branca, como bastões atordoadores ou armas de choque. Mesmo com o enfraquecimento do governo e a tomada do país, as leis contra o porte de armas de fogos continuavam rígidas. Ainda mais em Kabukichō, que era uma mistura de "Terra dos Prazeres" com "Terra de Ninguém". Para que os negócios continuassem a prosperar, a própria Yakusa mantinha a lei e a ordem. Óbvio que, sem estar subordinada ao Estado, ou a qualquer mega corporação dominante, seus métodos são mais brutos do que o normal.

Kabukichō acabou sendo um dos poucos lugares que se manteve relativamente intacto. Enquanto praticamente qualquer cidade do mundo acabou se rendendo ao arranha-céus titânicos, o distrito manteve-se praticamente intacto, conservando seus prédios e a sua decoração extravagante. Óbvio que para comportar o enorme fluxo de pessoas que visitam o lugar, o distrito teve que se expandir. A solução foi ir para baixo, onde existe uma enorme galeria com vários andares, cada um com um tipo de serviço. Embora lá seja bem movimentado, a rua ainda mantêm um charme que atrai a atenção de todos que passam por lá. Os dois resolveram ficar na parte de cima pela noite. As ruas eram uma atração em si.

Os dois chegaram ao restaurante. Era simples, mas era bom, e bem reconhecido no distrito. Os dois se sentaram e logo retomaram a conversa.

– Então, como estão as coisas na diretoria? – Susumu perguntou se ajeitando em sua cadeira.

– Nada demais. – Atsuko respondeu colocando sua bolsa no encosto da cadeira. – Quer dizer, não tem nada de muito emocionante em atender ligações e anotar recados. Nem posso ficar sabendo do que acontece nos laboratórios. Com certeza você tem mais coisas legais para falar do que eu. A menos que esteja interessado em saber das coisas que não devia saber no escritório.

Ele riu com a resposta. – Esse parece ser um bom assunto. Não é como se as coisas nos laboratórios fossem tão interessantes. Quando a gente consegue um progresso, é bem empolgante, mas entre eles tem uma sequência de frustrações. Por mais que a gente esteja bem avançado no campo da robótica e das IAs, o avanço ainda vai muito na base da tentativa e erro.

– Mas pelo menos é uma coisa boa o que vocês fazem. É um progresso de verdade. Muito mais importante do que descobrir quem pega quem no escritório.

Ela parecia chateada após a resposta. Como se não gostasse da sua profissão e de tudo que envolvia trabalhar como secretária.

Seu acompanhante se condoeu. Tentando melhorar a situação, ele disse:

– Se fizer você se sentir melhor, vou gostar de ouvir as fofocas lá de cima. É uma boa mudança de assunto.

Ela achou graça. Viu que foi uma tentativa para lhe animar. Resolveu ir adiante. – Bom, se você insiste, eu conto. Mas antes, quero saber o que vocês andam fazendo lá por baixo.

Susumu riu e concordou. – Bom, se prepara, pois vai ter bastante papo técnico. Lá no desenvolvimento achamos um jeito de tornar as IAs mais próximas do ser humano. O pessoal da direção está bem animado.

– Como assim?

– Inserção de memórias. Memórias criam um estofo, tornando mais fácil de acreditar que eles são humanos de verdade.

– Mas qual é a diferença entre essa nova IA e as que já existem?

– As atuais são muito automatizadas. Elas são capazes de tomar decisões, mas elas não são capazes de ter traços humanos como empatia e sentimentos.

– Acha que isso pode torna-las mais próximas de um ser humano? – Atsuko perguntou enquanto a comida dos dois chegava à mesa.

– Sim. O pessoal do laboratório acredita que lembranças onde uma pessoa pode se apoiar são fatores que ajudam a desenvolver uma ligação entre os seres humanos.

– E como conseguem memórias? Usar memórias alheias não é ilegal?

– Para fins de testes, não. Por isso usamos nossas próprias memórias para a fase de testes. Mas parece que isso está sendo revisto.

– E como pretendem criar memórias artificiais?

– Esse é um problema. Não sabemos ainda. É como eu falei. Uma descoberta, seguida de frustrações.

– Mesmo assim, é mais legal do que acontece lá em cima. – Os dois riram do comentário.

O resto do jantar foi bem agradável. Susumu falou mais sobre o que o seu setor estava desenvolvendo, deixando claro que alguns assuntos ele não comentaria por ser segredos da empresa. Atsuko retribuiu, revelando os podres do escritório, dizendo quais executivos saiam com quem, se eram casados ou não, ou se tinham algum hábito estranho que eles não gostariam que fosse revelado.

Terminado o jantar, os dois já estavam um pouco cansados, mas o movimento continuava intenso como antes. Eles resolveram que era hora de ir embora. Atsuko disse que gostaria de ir pela parte mais ao norte do bairro. Era uma desculpa para ficarem mais tempo juntos, e pegarem uma das saídas mais vazias do Distrito. Foram para lá conversando sobre a vida. Os dois concordavam que a noite havia sido excelente.

O portão de acesso que ela havia falado era realmente em uma área bem vazia. Ali era o local ocupado por casas de massagens e "Love Hotels". Os dois pararam na rua, como se fossem se despedir.

– Gostei muito da noite, e de você também. – Atsuko respondeu olhando para ele, meio sem jeito. – É uma pena eu ter que fazer isso.

Susumu ficou sem entender o que ela disse. Só compreendeu a situação quando viu que ela tinha tirado uma arma de dentro do casaco. IWI Jericho 941, a Baby Eagle.

– Como assim? O que está acontecendo?

Atsuko alterou a sua fisionomia. Durante a noite ela manteve um ar feliz, como de quem está aproveitando o momento. Agora seu rosto era uma máscara fria e sem emoções. Ela quebrou o silencio dizendo:

– Acho que te devo a verdade. Não sou uma secretária da Seitei. Sou uma matadora. A Seitei me contratou para desligar um androide. Você.

– Como assim desligar? Atsuko! eu não estou entendendo!

Atsuko, mantendo o rosto sem expressões, respondeu.

– O projeto que você me explicou na verdade está muito mais avançado do que você acha. Como eu disse, você é um androide, com memórias emprestadas de outro funcionário. Acontece que a série da qual você faz parte tem um problema na programação que corta o acesso remoto, além de falhas que podem levar à degradação do comportamento. Por isso, me contrataram para te desligar. Tem uma boa razão para seu nome ser "Susumu".

Susumu tentou mais uma vez se explicar. – Não sei o que te disseram, mais eu não sou um androide. Você precisa acreditar em mim.

Ela puxou um aparelho pequeno do bolso com a mão esquerda, sem tirar os olhos de Susumu. Ao apertar um botão lateral, ela apontou o mesmo para uma parede branca. Era um refletor de bolso. Ali aparecia uma série de esquemas e fotos de um androide em seu processo de fabricação. Do processo de montagem das partes mecânicas, até os últimos toques e a finalização. No fim, o androide estava indiscernível de uma pessoa comum. Junto, aparecia o codinome: SUSUMU.

– Desculpe. Sei que é um choque saber disso. Foi por isso que armei esse encontro aqui em Kabukichō. Você merecia uma última coisa boa.

Susumu não sabia o que dizer. Queria dizer que tudo aquilo era uma invenção, que ele era uma pessoa de verdade, com um passado, uma história, uma vida pela frente. Uma vida que ele gostaria de partilhar com Atsuko...

Mas não conseguiu.

A pistola que ela carregava foi modificada para disparar cargas elétricas. Um tiro fatal jogou Susumu longe. Seus circuitos fritaram por dentro e uma parte da pele do rosto derreteu, expondo a estrutura interna de metal. Atsuko sabia que pelo menos, ele não sentia dor.

– Se te serve de consolo. – Ela disse olhando para o corpo cibernético estendido no chão, o rosto ainda sem expressão. – Você foi um cara legal.

Atsuko pegou o celular. Primeiro ligou para um contato identificado apenas como "Seitei". – O serviço está pronto. – Ela desligou e abriu um aplicativo em seu celular. Esperou cinco segundos, até que a quantia de US$ 15,000,000,000 apareceu na tela. Logo em seguida, o mesmo contato "Seitei" ligou.

– Agradeço pelo serviço. Tomei a liberdade de adicionar um extra pelo trabalho bem feito.

– Quem vai cuidar do corpo? – Atsuko perguntou de forma fria.

– Temos gente da Yakusa indo para o local agora mesmo. Não se preocupe.

– Certo. Sempre bom fazer negócios com vocês. – Os dois lados desligaram.

Ela logo saiu do local e voltou para a movimentação das ruas principais. Uma chuva fraca começou a cair. Ela se apressou para sair do distrito autônomo. Por mais que gostasse das luzes e dos LEDs, queria ir embora e dormir.

Enquanto isso, o chão molhado novamente ganhava tons de aquarela com o reflexo dos LEDs.

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