-- Marta --
"Aff" O meu suspiro foi, provavelmente, ouvido em toda a baixa lisboeta. Estava à porta da minha loja a virar a placa que continha a palavra FECHADO para o lado de fora. Mais um dia de trabalho chegava ao fim e eu continuava sem um novo colaborador.
Depois de trancar a porta e descer as persianas, dirigi-me até ao balcão onde me esperava todo o trabalho contabilístico que era costume eu fazer depois de mais um dia de trabalho. A minha loja de antiguidades ia de vento em poupa e isso não poderia deixar-me mais feliz. Tinha toda a classe alta de Lisboa, e não só, rendida aos pequenos tesouros que eu pessoalmente escolhia e vendia na minha Antique. Quando comecei, estava completamente sozinha. Fundar a minha própria empresa do nada não tinha sido fácil, bem como angariar os clientes certos, mas uma vez ultrapassados esses pormenores, foi rápida a conquista de um lugar na sociedade. Apenas alguns meses depois abertura percebi que não poderia continuar sem contratar alguém que fosse capaz de restaurar algumas das peças que aos poucos eu adquiria. Eu adorava a parte de viajar e encontrar os objectos perfeitos para expor na Antique, mas frequentemente precisavam de restauro antes de serem expostos ao público. Cada peça que estava nas vitrinas era cuidadosamente escolhida por mim, ora em leilões, ora em feiras, mas todos eles passavam pelas mãos de Vanessa.
Percebi rapidamente que o segredo não estava na compra de artigos em leilões, mas na compra de velhos tesouros ocultos em pequenas feiras, que depois de restaurados, ficariam perfeitos para serem expostos na minha loja. Esses eram os artigos que os meus clientes preferiam. Apenas vendo artigos únicos, e isso é uma coisa que agrada à maior parte dos meus compradores, saberem que mais ninguém está a comprar uma peça igual.
O meu trabalho exige que eu viaje muito, e nesses momentos agradeço o minuto em que a Vanessa apareceu na minha vida. Ela tornou-se o meu braço direito e a minha melhor amiga também. Ela era a responsável pela restauração dos artigos que estavam expostos na loja, mas quando eu não estou por perto ela assume também o papel de vendedora, gerente, contabilista e qualquer outra função que surja de última hora, embora eu esteja perfeitamente ciente que é na oficina que ela se sente bem.
Mas o facto é que a loja estava melhor do que alguma vez tinha estado e todas as notícias de crise pareciam bater na porta e fazer ricochete. A Antique tinha cada vez mais clientes e mais vendas. Vinham clientes de fora do país para comprar especialmente na minha loja. Este era o principal motivo que me levou a decidir contratar uma nova pessoa para ajudar. Neste momento, nem eu, nem a Vanessa estamos a ser capazes de dar conta de tudo, especialmente as coisas que implicavam força de braços e transporte de artigos pesados. Por isso tinha decidido que contrataria um homem, afinal o trabalho exigia isso, apesar de me martirizar mentalmente por saber que nunca tinha tomado uma decisão tão machista como esta.
Já tinha colocado há mais de três semanas o anúncio no jornal, assim como na porta da loja, mas ainda não tinha obtido qualquer resposta, o que começava a deixar-me desesperada. Não podia deixar de sentir também alguma desilusão por não surgir nenhuma pessoa interessada em trabalhar aqui, na minha loja.
Tudo isto tinha começado apenas como um sonho, mas aos poucos fui capaz de o tornar realidade. A jovem e ingénua menina da aldeia que fui um dia estava agora instalada numa das melhores ruas comerciais de Lisboa e a sua loja era tão requisitada que já tinha sido referenciada várias vezes por revistas internacionais conceituadas da área de decoração.
Entrar na Antique era como fazer uma viagem no tempo, mas sempre numa versão luxuosa dos factos. Havia lugar para quase todas as civilizações conhecidas, o que transformava a minha loja na mais exótica de todas as lojas da cidade. Isso agradava os clientes, e aprendi rapidamente que o que agradava os clientes também me agradava a mim. Os artigos disponíveis não estão à disposição de todas as carteiras, eu sei disso, mas nem por esse motivo deixo de ter clientes.
"Estás outra vez com aquela cara parva que costumas ter quando pensas muito!"
De uma forma ou de outra, a Vanessa sempre arranja uma forma de me assustar, como fez agora.
"Assustaste-me!" ela sorriu, dando a entender que tinha sido esse o objectivo e eu fiz de conta que tinha amuado.
"Afinal, no que é que estavas a pensar?"
"Na Antique. Mais um dia sem que uma única pessoa responda ao anuncio." Desta vez foi ela quem fez uma cara de desgosto.
"Começa a ser muito tempo... Não percebo..."
"O quê?"
"Com duas gatas como nós a trabalhar nesta loja, deveria chover homens fortes e belos para serem nossos colaboradores! Os deuses gregos deveriam fazer fila só para nos adorar!"
Não consegui deixar de rir da cara dramática que ela expressou enquanto dizia aquela parvoíce como se fosse a verdade mais absoluta à face da Terra.
"Parva! Sou comprometida, lembras-te?"
"Eu lembro-me, o teu noivo é que se esquece frequentemente. Além disso olhar ainda não rouba pedaços."
"Ele não se esquece de mim!"
"Ai não? Quando foi a última vez que falaste com ele?"
"Hoje de manhã. Ele mandou uma mensagem a dizer bom dia!" Cruzei os braços sobre o peito. Esta conversa começa a deixar-me desconfortável.
"Bem, que simpático da parte dele se lembrar que tu existes depois de dias sem te dizer uma única palavra. Mas sê sincera comigo, depois de lhe responderes, ele respondeu de volta?"
Mordi o interior da minha bochecha enquanto retardava a minha resposta. Eu sabia que ela tinha razão, mas não o admitiria em voz alta, por isso tentei desculpá-lo:
"Ele é médico!"
"E isso é suposto ser uma desculpa para ele? O meu médico de família também tem a mesma profissão e tem três filhos, sete netos e uma esposa feliz há mais de quarenta anos! Ser médico não o impede de ter vida para além do hospital. Não o impede de falar contigo, a sua noiva!"
"Ele é cirurgião!"
"Deveria operar o próprio cérebro para ver se não se esquece tanto de ti!"
"O que esperas que eu faça?" O meu tom de voz soou mais desesperado do que eu gostaria de ter soado e a Vanessa percebeu isso, o que a fez mostrar uma cara mais compreensiva e aproximar-se de mim.
"Eu não quero que faças nada, Marta. Quero apenas que descubras o que é o melhor para ti."
As palavras dela atingiram-me em cheio, tal como ela sabia que aconteceria. Há alguns meses que o meu relacionamento com o Filipe estava diferente, mais distante, mais morto. Eu apenas não estava pronta para tomar qualquer decisão a esse respeito. Apertei mais os braços à volta de mim mesma e confessei: "Eu apenas não estou pronta para uma ruptura. Sinto que ainda há algo a fazer."
A Vanessa deve ter percebido o meu desconforto, porque decidiu mudar de assunto. "Vamos jantar fora hoje!"
"O quê?"
"Já tens alguma coisa combinada para hoje?"
"Não, mas..."
"Então está decidido, vamos àquele restaurante de sushi novo que abriu na baixa!"
"Não sei se é uma boa ideia..."
"É uma óptima ideia! Agora termina esses cálculos que eu vou terminar de arrumar a oficina. Quando estiveres pronta anda ter comigo. Despacha-te!"
Sem esperar que eu respondesse, ela deu meia volta e dirigiu-se à parte traseira da loja que dava acesso à sua oficina.
Voltei-me para os meus cálculos e finalizei-os rapidamente. Vanessa podia ser o complemento perfeito da equipa e a minha melhor amiga muito compreensiva, mas odiava esperar.
Quando nos conhecemos, ela era apenas uma jovem recém-licenciada em busca de uma oportunidade para mostrar o seu talento e a quem já várias portas se tinham fechado. Decidi que seria eu a que lhe iria dar essa oportunidade e não demorou muito até ter a confirmação que tinha apostado bem. Ela revelou-se uma excelente profissional capaz de fazer milagres com tudo o que eu lhe colocava à frente, por mais danos que tivesse.
Durante os cinco anos de existência da Antique, tínhamos sido uma equipa, até ao momento, suficiente para os trabalhos que a loja exigia, mas o meu desejo de expansão do negócio tornava cada vez mais obvia a necessidade um novo colaborador.
Nunca tinha pensado que seria tão difícil encontrar alguém interessado em trabalhar connosco. Havia três semanas que tinha colocado o anúncio no jornal e nem um único candidato se tinha apresentado na loja para fazer a entrevista.
Lancei os últimos valores na folha de cálculo e tirei o dinheiro da caixa para colocar no cofre que estava no meu escritório, também nas traseiras da loja. Desliguei o computador, tranquei todas as portas, apaguei as luzes e fui até à oficina ver se a Vanessa estava pronta.
*****
Jantar com a Vanessa funcionava sempre como uma lufada de ar fresco para mim. Ela conseguia fazer-me rir quando sabia que eu precisava e ouvia-me quando sabia que eu queria desabafar. Esta noite tinha sido a versão palhaça dela que tinha estado jantar comigo. Rir foi tudo o que consegui fazer durante todo o tempo que estivemos juntas. Se realmente é verdade que rir aumenta a esperança média de vida, hoje ganhei alguns anos graças a ela. Apesar de tudo, apenas vinte minutos depois de me ter despedido dela, enquanto coloco a chave e abro a porta do meu apartamento, sabendo que ele está sozinho para me receber, as horas que passei com ela, divertida, e a beber um bom vinho pareciam bem distantes. Ninguém imaginava a solidão que eu sentia dentro de mim.
Há menos de sete meses o Filipe quase se tinha mudado para cá. Dormia comigo quase todas as noites, guardava uma escova de dentes na casa de banho e tinha o seu próprio espaço no meu armário. Aos poucos as visitas foram diminuindo de intensidade, as noites cá passadas muito mais raras, os telefonemas ficaram escassos e as mensagens de texto eram quase sempre restringidas a monossílabos.
A Vanessa passa a vida a dizer-me que ele não me merece, que devia terminar tudo com ele e seguir em frente. Mas eu não consigo parar de imaginar que talvez ele não seja o culpado. E se a culpada sou eu? E se fui eu que provoquei isto? Todas as pessoas que eu amo acabam por se afastar, de uma forma ou de outra... Os meus pais, a minha avó, o Filipe... E se eu for aquela que está errada? Estes são os pensamentos que assombram a minha mente todas as noites, quando me sento no meu sofá enquanto espero que o sono chegue. Costumava adormecer mal caía na cama... Ultimamente tem sido mais complicado... Hoje, para variar um pouco, já sinto os olhos a pesar. Talvez a Vanessa tenha razão quando diz que o álcool ajuda a ter uma noite santa. Espero apenas que a santidade desta noite não me custe o inferno pela manhã...
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